A Metamorfose de Franz Kafka
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  1. Ultimamente, Gregório quase não comia. Só quando passava por acaso junto da comida que lhe tinham posto abocanhava um pedaço, à guisa de distração, conservando-o na boca durante coisa de uma hora, após o que normalmente acabava por cuspi-lo. Inicialmente pensara que era o desagrado pelo estado do quarto que lhe tirara o apetite. Depressa se habituou às diversas mudanças que se haviam ocorrido no quarto. A família adquirira o hábito de atirar para o seu quarto tudo o que não cabia noutro sítio e presentemente havia lá uma série delas, pois um dos quartos tinha sido alugado a três hóspedes. Tratava-se de homens de aspecto grave, qualquer deles barbado, conforme Gregório verificara um dia, ao espreitar através de uma fenda na porta, que tinham a paixão da arrumação, não apenas no quarto que ocupavam, mas também, como habitantes da casa, em toda ela, especialmente na cozinha. Não suportavam objetos supérfluos, para não falar de imundícies. Acresce que tinham trazido consigo a maior parte do mobiliário de que necessitavam. Isso tornava dispensáveis muitas coisas, que, insusceptíveis de venda mas mal empregadas para deitar fora, iam sendo acumuladas no quarto de Gregório, juntamente com o balde da cinza e a lata do lixo da cozinha. Tudo o que não era preciso de momento, era, pura e simplesmente, atirado para o quarto de Gregório pela empregada, que fazia tudo às pressas. Por felicidade, Gregório só costumava ver o objeto, fosse qual fosse, e a mão que o segurava. Talvez ela fizesse tenções de tornar a levar as coisas quando fosse oportuno, ou de juntá-las para um dia mais tarde as deitar fora ao mesmo tempo; o que é facto é que as coisas lá iam ficando no próprio local para onde ela as atirava, exceto quando Gregório abria caminho por entre o monte de trastes e as afastava um pouco, primeiramente por necessidade, por não ter espaço suficiente para rastejar, mas mais tarde por divertimento crescente, embora após tais excursões, morto de tristeza e cansaço, permanecesse inerte durante horas. Por outro lado, como os hóspedes jantavam frequentemente lá em casa, na sala de estar comum, a porta entre esta e o seu quarto ficava muitas noites fechada; Gregório sempre aceitara facilmente esse isolamento, pois muitas noites em que a deixavam aberta tinha-se alheado completamente do acontecimento, enfiando-se no recanto mais escuro do quarto, inteiramente fora das vistas da família. Numa ocasião, a empregada deixou a porta ligeiramente aberta, assim tendo ficado até à chegada dos hóspedes para jantar, altura em que se acendeu o candeeiro. Sentaram-se à cabeceira da mesa, nos lugares antigamente ocupados por Gregório, pelo pai e pela mãe, desdobraram os guardanapos e levantaram o garfo e a faca. A mãe assomou imediatamente à outra porta com uma travessa de carne, seguida de perto pela filha, que transportava outra com um montão de batatas. Desprendia-se da comida um fumo espesso. Os hóspedes curvaram-se sobre ela, como a examiná-la antes de se decidirem a comer. Efetivamente, o do meio, que parecia dispor de uma certa autoridade sobre os outros, cortou um pedaço da carne da travessa, certamente para verificar se era tenra ou se havia que mandá-la de volta à cozinha. Mostrou um ar de aprovação, que teve o dom de provocar na mãe e na irmã, que os observavam ansiosamente, um suspiro de alívio e um sorriso de entendimento.
    A família de Gregório comia agora na cozinha. Antes de dirigir-se à cozinha, o pai de Gregório vinha à sala de estar e, com uma rasgada vénia, de boné na mão, dava a volta à mesa. Os hóspedes levantavam-se todos e murmuravam qualquer coisa por entre as barbas. Quando tornavam a ficar a sós, punham-se a comer, em quase completo silêncio. Gregório estranhou que, por entre os vários sons provenientes da mesa, fosse capaz de distinguir o som dos dentes a mastigarem a comida. Era como se alguém pretendesse demonstrar-lhe que para comer era preciso dispor de dentes e que, com mandíbulas que os não tivessem, por melhores que elas fossem, ninguém podia fazê-lo. Fome, tenho eu, disse tristemente Gregório, de si para si, mas não é de comida desta. Estes hóspedes a empanturrarem-se e eu para aqui a morrer de fome.
     
    Durante todo o tempo que ali passara, Gregório não se lembrava de alguma vez ter ouvido a irmã a tocar; nessa mesma noite, ouviu o som do violino na cozinha. Os hóspedes tinham acabado de jantar. O do meio trouxera um jornal e dera uma página a cada um dos outros; reclinados para trás, liam-no, enquanto fumavam. Quando se ouviu o som do violino, apuraram os ouvidos, levantaram-se e dirigiram-se em bicos de pés até à porta do vestíbulo, onde se detiveram, colados uns aos outros, à escuta. Sem dúvida apercebendo-se, na cozinha, dos seus movimentos, o pai de Gregório perguntou:
     
  2.  

    — Incomoda-os o som do violino, meus senhores? Se incomoda, paro agora.

    Pelo contrário — replicou o hóspede do meio —, não poderá a Menina Samsa vir tocar ali para a sala ao pé de nós? Sempre é mais apropriado e está-se muito melhor.

    — Oh, com certeza — respondeu o pai de Gregório, como se fosse ele o violinista.

    Os hóspedes regressaram à sala de estar, onde ficaram à espera. Imediatamente apareceu o pai de Gregório com a estante de música, a mãe com a partitura e a irmã com o violino. Grete fez silenciosamente os preparativos para tocar. Os pais, que nunca tinham alugado ‚quartos e, por esse motivo, tinham uma noção exagerada da cortesia devida aos hóspedes, não se atreveram a sentar-se nas próprias cadeiras. O pai encostou-se à porta, com a mão direita enfiada entre dois botões do casaco, cerimoniosamente abotoado até acima. Quanto à mãe, um dos hóspedes ofereceu-lhe a cadeira, onde se sentou a uma borda, sem sequer a mexer do sítio onde ele a colocara.

    A irmã de Gregório começou a tocar, enquanto os pais, sentados de um lado e doutro, lhe observavam atentamente os movimentos das mãos. Atraído pela música, Gregório aventurou-se a avançar ligeiramente, até ficar com a cabeça dentro da sala de estar. Quase não se surpreendia com a sua crescente falta de consideração para com os outros; fora-se o tempo em que se orgulhava de ser discreto. A verdade, porém, é que, agora mais do que nunca, havia motivos para ocultar-se: dada a espessa quantidade de pó que lhe enchia o quarto e que se levantava no ar ao menor movimento, ele próprio estava coberto de pó. Ao deslocar- se, arrastava atrás de si cotão, cabelos e restos de comida que se lhe agarravam ao dorso e aos flancos. A sua indiferença em relação a tudo era grande demais para dar-se ao trabalho de deitar-se de costas e esfregar-se no tapete, para se limpar, como antigamente fazia várias vezes ao dia. E, apesar daquele estado, não teve qualquer pejo em avançar um pouco mais, penetrando no soalho imaculado da sala.

    Era evidente que ninguém se apercebera da sua presença. A família estava totalmente absorta no som do violino, mas os hóspedes, que inicialmente tinham permanecido de pé, com as mãos nos bolsos, quase em cima da estante de música, de tal maneira que por pouco poderiam ler também as notas, o que devia ter perturbado a irmã, tinham se logo afastado para junto da janela, onde sussurravam de cabeça baixa, e ali permaneceram até que o Senhor Samsa começou a fitá-los ansiosamente. Efetivamente, era por demais evidente que tinham sido desapontadas as suas esperanças de ouvirem uma execução de qualidade ou com interesse, que estavam saturados da audição e apenas continuavam a permitir que ela lhes perturbasse o sossego por mera questão de cortesia. Adivinhava-se-lhes a irritação pela maneira como sopravam o fumo dos charutos para o ar, pela boca e pelo nariz.

    Grete estava a tocar tão bem! Tinha o rosto inclinado para o instrumento e os olhos tristes seguiam atentamente a partitura. Gregório arrastou-se um pouco mais para diante e baixou a cabeça para o chão, a fim de poder encontrar o olhar da irmã. Poderia ser realmente um animal, quando a música tinha sobre si tal efeito? Parecia abrir diante de si o caminho para o alimento desconhecido que tanto desejava. Estava decidido a continuar o avanço até chegar ao pé da irmã e puxar- lhe pela saia, para dar-lhe a perceber que devia ir tocar para o quarto dele, visto que ali ninguém como ele apreciava a sua música. Nunca a deixaria sair do seu quarto,

    pelo menos enquanto vivesse. Pela primeira vez, o aspecto repulsivo seria de utilidade: poderia vigiar imediatamente todas as portas do quarto e cuspir a qualquer intruso. A irmã não precisava de sentir-se forçada, porque ficaria à vontade com ele. Sentar-se-ia no sofá, junto dele, e inclinar-se-ia para confiar-lhe que estava na firme disposição de matriculá-la no Conservatório e que, se não fosse a desgraça que lhe acontecera, no Natal anterior — será que o Natal fora há muito tempo? — teria anunciado essa decisão a toda a família, não permitindo qualquer objeção. Depois de tal confidência, a irmã desataria em pranto e Gregório levantar-se-ia até se apoiar no ombro dela e beijaria o seu pescoço, agora liberto de colares, desde que estava empregada.— Senhor Samsa! — gritou o hóspede do meio ao pai de Gregório, ao mesmo tempo que, sem desperdiçar mais palavras, apontava para Gregório, que lentamente se esforçava por avançar. O violino calou-se e o hóspede do meio começou a sorrir para os companheiros, acenando com a cabeça. Depois tornou a olhar para Gregório. Em vez de enxotá-lo, o pai parecia julgar mais urgente acalmar os hóspedes, embora estes não estivessem nada agitados e até parecessem mais divertidos com ele do que com a audição de violino, Precipitou-se para eles e, estendendo os braços, tentou convencê-los a voltarem ao quarto que ocupavam, ao mesmo tempo que lhes ocultava a visão de Gregório. Nessa altura começaram a ficar mesmo incomodados devido ao comportamento do velho ou porque compreendessem de repente, que tinham Gregório por vizinho de quarto. Pediram- lhe satisfações, agitando os braços no ar como ele, ao mesmo tempo que cofiavam embaraçadamente as barbas, e só relutantemente recuaram para o quarto que lhes estava destinado. A irmã de Gregório, que para ali se deixara ficar, desamparada, depois de tão brusca interrupção da sua execução musical, caiu novamente em si, endireitou-se rapidamente, depois de um instante a segurar no violino e no arco e a fitar a partitura, e, atirando com o violino para o colo da mãe, que permanecia na cadeira a lutar com um acesso de asma, correu para o quarto dos hóspedes, para onde o pai os conduzia, agora com maior rapidez. Com gestos hábeis, compôs os travesseiros e as colchas.