A Metamorfose de Franz Kafka
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  1. De dia ou de noite, Gregório mal dormia. Muitas vezes assaltava-o a idéia de que, ao tornar a abrir-se a porta, voltaria a tomar a seu cargo os assuntos da família, como sempre fizera. Depois deste longo intervalo, vinham-lhe mais uma vez ao pensamento as figuras do patrão e do chefe de escritório, dos caixeiros-viajantes e dos aprendizes, do estúpido do porteiro, de dois ou três amigos empregados noutras firmas, de uma criada de quarto de um dos hotéis da província, uma recordação, doce e fugaz, de uma caixeira de uma loja de chapéus que cortejara com ardor, mas demasiado lentamente - todas lhe vinham à mente, juntamente com estranhos ou pessoas que tinha esquecido completamente. Mas nenhuma delas podia ajudá-lo a ele nem à família, pois não havia maneira de contactar com elas, pelo que se sentiu feliz quando se desvaneceram.

     

    Outras vezes não estava com disposição para preocupar-se com a família e apenas sentia raiva por nada se ralarem com ele e, embora não tivesse ideias assentes sobre o que lhe agradaria comer, arquitetava planos de assaltar a despensa, para se apoderar da comida que, no fim de contas, lhe cabia, apesar de não ter fome.

    A irmã não se incomodava a trazer-lhe o que mais lhe agradasse; de manhã e à tarde, antes de sair para o trabalho, empurrava com o pé, para dentro do quarto, a comida que houvesse à mão, e à noite retirava de novo com o auxílio da vassoura, sem se preocupar em verificar se ele a tinha simplesmente provado ou — como era vulgar acontecer — a havia deixado intacta.

    A limpeza do quarto, procedia sempre à noite, não podia ser feita mais apressadamente. As paredes estavam cobertas de manchas de sujidade e, aqui e além, viam-se bolas de sujidade e de pó no soalho. A princípio, Gregório costumava colocar-se a um canto particularmente sujo, quando da chegada da irmã, como que a repreendê-la pelo facto. Podia ter passado ali semanas sem que ela fizesse fosse o que fosse para melhorar aquele estado de coisas; via a sujidade tão bem como ele; simplesmente, tinha decidido deixá-la tal como estava. E numa disposição pouco habitual e que parecia de certo modo ter contagiado toda a família, reservava-se, ciumenta e exclusivamente, o direito de tratar do quarto de Gregório. Certa vez a mãe procedeu a uma limpeza total do quarto, o que exigiu vários baldes de água — é claro que esta baldeação também incomodou Gregório, que teve de manter-se estendido no sofá, perturbado e imóvel — mas isso custou-lhe bom castigo. À noite, mal a filha chegou e viu a mudança operada no quarto, correu ofendidíssima para a sala de estar e, indiferente aos braços erguidos da mãe, entregou-se a uma crise de lágrimas. Tanto o pai, que evidentemente saltara da cadeira, como a mãe, ficaram momentaneamente a olhar para ela, surpresos e impotentes. A seguir, reagiram ambos: o pai repreendeu, por um lado, a mulher por não ter deixado a limpeza do quarto para a filha e, por outro lado, gritou com Grete, proibindo-a de tornar a cuidar do quarto; enquanto isso, a mãe tentava arrastar o marido para o quarto respectivo, uma vez que estava fora de si. Agitada por soluços, Grete batia com os punhos na mesa. Gregório, entretanto, assobiava furiosamente, por ninguém ter tido a idéia de fechar-lhe a porta, para o poupar a tão ruidoso espetáculo.